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João Gonçalves Zarco (re)descobre oficialmentre a ilha da Madeira no dia 1 de Julho de 1419 ou de 1420. Contornado a Ponta de São Lourenço, âncora na baia de Machico, por esta constituir uma proteção, onde passaram a noite e só desembarcaram no dia seguinte. A ilha era coberta de denso arvoredo, de onde advém o topónimo denominado pelo capitão. Depois do primeiro reconhecimento da beira-mar do vale de Machico fez-se uma reunião para planear a melhor forma de efetuar a identificação do resto da costa sul para oeste, tendo-se optado pela utilização de batéis, deixando ancorada na baía a caravela, com receio de prováveis baixios e correntes.
Quando o descobridor passou por um “vale de formoso arvoredo”, no dia 3 de Julho, encontrou cedros velhos tombados pelo tempo com os quais mandou fazer uma cruz, que mandou colocar no cimo de uma árvore, batizando o lugar de Santa Cruz. Atualmente, no meio da Praça Manuelina (Praça Dr. João Abel de Freitas) está um cruzeiro. Ao que parece, a coluna é um reaproveitamento do fuste da coluna em mármore, do séc. XVI, que outrora estava ao lado da fachada axial da Igreja Matriz, lembrando o local onde se levantava a árvore que servia de suporte à cruz-padrão de Zarco, e que foi derrubado por um tufão no ano de 1889. A cruz já deve datar do Séc. XIX.
Só nos inícios do Séc. XVI aparecem as primeiras casas cobertas de telha e sobradas na localidade, pertencentes a gente abastada, sendo mesmo a atual Câmara um dos primeiros edifícios de dois pisos a surgir na recentemente criada vila de Santa Cruz (1515). Hoje este edifício, de linguagem tardo-gótica / manuelina, é monumento nacional, por ser um dos raros imóveis onde, desde a sua fundação, a edilidade continua a funcionar.
Uma pessoa que se destacou na vida social e económica de Santa Cruz foi João de Freitas, fidalgo da casa do Duque D. Diogo (irmão de D. Manuel I) casado com D. Guiomar de Lordello. Regressado em 1511 do norte de África, onde combateu valentemente os Mouros, era homem de confiança do rei D. Manuel I e por isso vai ser recebedor da Fazenda da área de Santa Cruz, do lucrativo comércio do açúcar, chegando mesmo a localidade a possuir uma alfândega para cobrança e exportação do “ouro branco”. É ele, efetivamente, quem vai persuadir o monarca a dar o estatuto de município à dita localidade e é, inclusivamente, nas suas próprias casas, onde é reunida a primeira vereação da vila. É graças a esta personalidade que a localidade é elevada a vila a 25 de Junho de 1515, desmembrando-se da Capitania de Machico. No ano seguinte compra um prédio, de piso térreo, que manda sobradá-lo, imóvel que chegou aos nossos dias e onde atualmente continua a funcionar os Paços do Concelho.
A Carta Régia da criação da vila data de 25 de Junho de 1515 e o respectivo foral, que efetivamente vinha constituir a localidade em autêntico concelho, data de 15 de Dezembro de 1515. Esta separação da Vila de Machico não vai, naturalmente, agradar ao Capitão-Donatário e aos vereadores do respectivo município que se vão opor a tal pretensão, tendo o Capitão, inclusivamente, negado-se a receber a apresentação da Carta à Câmara de Machico. A área deste novo concelho de Santa Cruz foi desmembrada de Machico desde o Porto do Seixo até ao termo do Caniço, abrangendo também um pequeno território da Capitania do Funchal - as terras do Caniço que se localizam a oeste da Ponta da Oliveira.
Também deve-se a esta proeminente personalidade, João de Freitas, a construção da Igreja Matriz de Santa Cruz, sendo o responsável pelo andamento das obras, e é também ele quem está na génese da fundação do Hospital da Santa Casa da Misericórdia local, que chegou aos nossos dias. O seu túmulo de laje de gosto flamengo, com lâminas de bronze a orlar a tampa, pode ainda hoje ser visto na capela-mor da Igreja Matriz. O seu filho Jordão de Freitas, que foi Capitão-mor das Armadas do Reino e Senhor do Arquipélago das Molucas, ofereceu um porta-paz, em prata dourada com pedras preciosas, à Igreja Matriz e que hoje se encontra no Museu da Quinta das Cruzes, apresentando já uma gramática renascentista.
Graças à bem sucedida plantação de cana-de-açúcar, nos finais do séc. XV vão-se instalar, também na área de Santa Cruz, a média nobreza estrangeira, principalmente italiana (aportuguesando os nomes) que vêm à procura da florescente produção e lucrativo comércio do açúcar. Dele é exemplo o opulento Urbano Lomelino que se estabeleceu no Porto de Seixo com casa e engenho, fundando mais tarde, por piedosa disposição testamentária, o Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz. Urbano Lomelino era casado com Joana Lopes mas morreu sem filhos, e é por isso que o seu sobrinho, Jorge Lomelino, casado com Maria Adão, quem vai efetivamente levantar o dito mosteiro. De entre outros artefactos resta hoje, do espólio do convento, uma preciosa pintura flamenga, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, que se encontra no Museu de Arte Sacra do Funchal, depois de passar por rocambolescas vicissitudes. Na pintura, nos volantes, estão representados os seus doadores. Outros legados pios que este mercador e produtor açucareiro deixou foi a obrigatoriedade de se mandar, todos os anos, dizer missa numa igreja de Génova, sua terra natal, e onde a sua mãe repousava. O seu túmulo, de gosto manuelino, encontra-se hoje na Capela de Nossa Senhora da Piedade do Museu da Quinta das Cruzes.
Outro exemplo é o não menos opulento, Nuno Fernandes Cardoso que se vai fixar em Gaula, construindo um Solar e capela de S. João Latrão, que chegou aos nossos dias. Casado com Leonor Dias vai mesmo mandar os seus filhos para Itália para estudarem e serem intermediários do comércio do açúcar madeirense. De entre outros objetos litúrgicos, resta desta capela um precioso e interessante retábulo flamengo, dedicado a Nossa Senhora da Misericórdia, e que hoje se encontra no Museu de Arte Antiga, em Lisboa. No painel central, ajoelhados em adoração, também estão representados os doadores.
Ou, ainda, as irmãs Isabel e Leonor Álvares, que instituíram a Capela da Mãe de Deus, no Caniço, inicialmente construída com o propósito de se constituir como capela de um pequeno convento. Destaca-se, nesta ermida de gramática manuelina, o seu retábulo original maneirista que incorpora preciosas pinturas de Diogo Contreiras, um dos mais interessantes pintores portugueses do período maneirista.